domingo, 16 de setembro de 2007

Poemas da Alma (de Alma Welt)



Capa do folheto de autoria de Guilherme de Faria, publicado pelas "Edições do Pavão Misterioso", representando "Eros e Psiqué", em que esta é um retrato da própria Alma Welt, e para o qual ela posou, quando ela e o pintor se conheceram em 2001.
1

Na penumbra do claro ateliê
ao entardecer
me encontro
só e grata
toda uma vida
tantas vidas
percorrem-me o olhar de dentro
ao som
de um piano ausente
intermezzo
vindo de tardes outras
tristes e fecundas
como esta pequena imagem
miniatura
de minha solitária vida
de pintora
plena


2

Espero (meu coração admite)
uma inesperada
e oportuna visita
Sempre espero uma visita
redentora
Meu coração
metáfora impenitente
aguarda o renascer
moto perpétuo
de um amor
de muitas faces

Porquê essa multiplicidade
Se o verdadeiro amor é único?
Boa pergunta


3

Estendo a mão
ao acaso
encontro sempre um pincel
um livro, uma caneta
não posso
me queixar


4

às vêzes
muitas vêzes
rodopio eufórica
neste meu pequeno salão
improvisado
de paredes derrubadas
de apê anódino
agora encantado
pelo meu próprio
toque
eternamente
entusiasmada
Graças.


5

Quem me seguirá
aos píncaros
que a minha alma atinge
em seu próprio universo
construído
à custa desta fé invencível
no dom desta arte
que me coube
secreto merecimento
do qual
só temo o orgulho?

6

Ser mulher em meu corpo
mais do que em minha alma
universal
como todas
este o meu prazer e orgulho
que molda este mesmo corpo
com secreta perfeição
visível em parte
pleno para os meus amores
glorioso em sua intimidade
de quatro paredes
e amplo leito


7

Quisera um jardim
sob um balcão
até onde a vista
encontra
o muro necessário
à mesma vista
repleta como com
a braçada de flores
que então chega
numa manhã qualquer
com um cartão
fugaz
e a escritura
pelo apuro
desfaz
cor e textura
ao próprio muro


8

Olho em torno
e constato
ter construído aqui
sem um adorno
no espaço limitado
que me coube
meu reino de prazer
insuspeitado
de livros
e de telas só
cercado


9

Retorno sempre
ao eixo da criação
ao lugar
sagrado
da última inspiração
há quem não creia
nisso
de inspiração
eu sim
nada é nosso
tudo vem dos deuses
e meu orgulho
é ser a sua boneca
entre outras tantas
nem tantas assim
prediletas


10

Hoje ponho um vaso
com flores
onde retirei os pincéis
eles não se excluem
é claro
flores e pincéis
O visitante
de hoje
sucumbirá
à sutil armadilha
cruzo os dedos
supersticiosa
e boba
que sou


11

Homem
que deitas comigo
teu corpo primoroso
que nem sequer
escolhi
fui sorteada
entre os deuses
e és um deles
maroto
cheio da malícia
ingênua
dos olímpicos
e como eles
um laivo de crueldade
escondida
de ti próprio


12

Pode o coração
pedir mais
que amar amar
e ser amada
mui naturalmente?
o mui se impõe
vindo de longe
coração português
alma alemã
minha sede é antiga
dos dois lados
e aqui deságua
em ânsia
nunca saciada
de amar e amar
e ser amada


13


Resvala
a noite
sobre este dia
glorioso
nada pode
apagá-lo
meu amor
voltou
quero gritar de alegria
o meu amor
nas altas horas
do dia
da noite
do dia


14

Lanço sobre o papel
o desenho
inusitado
possibilidade sem fim
magia pura
nunca esgotável
alguma prestidigitação
coisa de maga
bruxa verdadeira
arte é isso
milagre
atrás do truque


15

Levanto-me
todo dia
cantando
de alegria
estou viva
estou amando
querem mais?
estou sonhando
até escrevo
sem querer
rimando
alegria mais profunda
que a dor
disse o mestre
sempre soube
e com lágrimas
a saúdo


16

Quem negará
o único tema
que vale
a pena?
quem levantará
a voz
contra o amor
“que reparte coroas
de alegria”?
estou viva
e espero
o meu amor
chegar
em breve
fecho os olhos
e canto
para esperar
o meu amor
tudo assim
simples
como a poesia


17

Quero ter o timbre
de um acalanto
para o meu amor
quando se deitar
cansado
a mais doce melodia
brotará dos meus gestos
quando ele cerrar os olhos
nos meus braços
seguro do meu amor
poderá
sem medo
adormecer


18

A tela branca
me convida
me instiga
espaço obscuro
terra de aventuras
montanhas
a escalar
mares navegáveis
talvez hostis
todas as terras
e alguns astros
tudo ao meu alcance
nada garantido
alguma dor
como a vida


19

Basta-me
a voz
e o cheiro
peculiar
do meu amor
para o desencadear
da poderosa máquina
das células
do afeto
feromônios
dizem
os cientistas
poetas que eles são
involuntários
sua visão
então
me nubla
e a embriaguez
se instala
irrevogável
tomo porres
do meu amor
bebedora impenitente
nada social
não buscarei
Amor Anônimo








ALEGORIAS DA ALMA
1

Tantas ânsias
outrora
apaziguadas
agora
somente o meu amor
no entanto
se compara
à busca dessa arte
que me espanto
ao constatar
de mim
a melhor parte.

Volto ao centro
de tudo
que formou
a face desta sina
e comandou
a razão
a vida, forma
e conteúdo
sofrendo de amar tanto
amando tudo
sobretudo
a beleza
e tanta arte
das quais os próprios deuses
fazem parte


2

Carrego
dentro em mim
secreto arquivo
de minha rica vida
espelho vário
de alguns grandes amores
com seus gestos
guardando seus temores
num armário
roídos pela traça
de uma angústia
que o coração perspassa
como sombra
apenas vislumbrada
na vidraça


3

Ouço ao longe
Uma flauta
e um latido
que uma imagem
arcaica
reconstrói
sua forma
permanece
no mármore
que o tempo
apenas rói
laica
no friso
um pastor
e seu cão
onde o latido?
não temos mais
a chave
e o sentido


4

Só temo
a voraz
sanha
das horas
o delicado corpo
devastando
conquanto vai
a mente
acrescentando
tributos da memória
e seu tesouro
perene talvez
embora envolto
em cada vez mais triste
pano roto


5

Não pedirei ao tempo
seu retorno
nem ao amor perdido
seu perdão
não ao remorso
não ao tédio
muito menos
do triste ócio vão
o desperdício
mas sim às incertezas
deste ofício
sim às lágrimas
de dor e de alegria
tão fecundas
tão doces se colhidas
no grato coração
por toda a vida


6

para acolher o meu amor
construo
um cenário de ouro
como igreja
uma taça dourada
sobre a mesa
paramentada então
em meu ofício
sem um sermão
nem mais fiéis
senão eu mesma


7

Desço ao jardim
das horas
tão só minhas
buscando pensamentos
de beleza
sou tão fiel a ela
com certeza
que me vejo qual
sacerdotisa
Vestal
virgem em minh’ alma
obstinada
cultuando minha deusa
destronada


8

Faço a mala
jogando meus cadernos
desenhos e poesias
sobre as roupas
levo também
lembranças
que não poucas
encheriam
malas e mais malas
Esta
a minha bagagem
declarada
Tão leve
e ao mesmo tempo
tão pesada
que temo
até mesmo
ser barrada


9

Amanhã serei
mais sábia
com este dia
transcorrido assim
intensamente
como pode o ser humano
inteligente
envelhecer talvez
triste e doente?
mas bato na madeira
quando penso
naquele inesperado
fim demente
de Nietzsche
Maupassant
Artaud
Van Gogh
e toda aquela gente
tão brilhante
que fica iluminando
eternamente


10

Hoje desperto
ao som
de um violino
e a melodia
sugere o privilégio
e a ironia
que cerca
o meu destino
tudo conspira
na manhã
arte e carinho
até este tão vago
meu vizinho


11



Volto à casa paterna, comovida
onde a alma e o coração nasceram,
aparentemente, nesta vida,
conquanto ecos ainda mais longínquos
julgo escutar ao fundo, estarrecida

olho as paredes, lombadas nas estantes,
retratos e poeira tão constantes
e um piano mudo expectante
de mãos habilidosas já ausentes

quanta tristeza, que noite persistente
atravessa o casarão demente!...
murmúrios e o correr das lágrimas
do pranto e o ranger de dentes...

contudo, na casa impregnada
uma carga de ausência renitente
que o coração martela ao pé da escada...

no hall, no labirinto,corredores,
jogo eterno da alma em seus temores,
buscando o leito de dossel materno,
o berço ao lado, o cortinado branco
ondulando ao vento como por encanto...

quero deitar de novo neste berço
quero dormir ouvindo o acalanto
e retornar ao mundo do sonhar primeiro,
afugentando o sono do espinheiro
pra ter de novo a casa que mereço
e ouvir de novo aquele canto...

no hall, no labirinto,corredores,
jogo eterno da alma em seus temores,
buscando o leito de dossel materno,
o berço ao lado, o cortinado branco
ondulando ao vento como por encanto...

21/11/2005




12


Tenho estado
a sorrir
na intimidade
não
frente ao espelho
na verdade
conquanto isso se passe
distraída
percebo
o movimento
não na face
mas neste coração
que transbordante
espera a hora
e o sabor
da saciedade.

Ele virá
é quase certo
e esta esperança
já põe
nestes meus lábios
esta dança.


Pensando nisso
dançarei
afasto os móveis
rodopio
neste espaço
generoso
e imaginário
eu sei
em que me fio.


Quanta emoção
quanta ventura
antecipada
numa simples
aventura
imaginada!

Tanto mais
que me apercebo
consolada
que se ele não vier
não perco nada.


13

Ponho um CD
e a música
fantástica
toda uma ópera
invade o meu apê
Delibes
Lakmé
“où va la jeune hindoue”
e vou com ela
tinindo a campainha
que a vela
o tigre afastará
e Vishnu embala
que a filha do pária
o encontrará

E vejo ali
a minha vida
frágil
como a pequena hindu
com seu sininho
que abre numa selva
o seu caminho
que é a minha arte
tão modesta
no mundo
vasto
como essa floresta


14

Para encantar
o meu amor
me rendo
sincera
ao seu viril encanto
não tentarei domá-lo
com meu canto
muito menos
ao seu falo
montar guarda


Não cercarei o espaço
do guerreiro
como uma ninfa
produzindo ecos
não rondarei atrás
pelos botecos
não lançarei Narciso
em seu espelho


15

“Se queres
desenhar
fecha os olhos
e canta”
disse o mestre
Picasso
o que me encanta
e me apercebo
que o contrário
também
é verdadeiro
quando quero
cantar
mesmo um bolero
pego o lápis
e o papel
primeiro


16

Minha vida
é um cântico
profano
e cheia de alegria
sem engano
encontro no
amor cotidiano
as pequenas coisas
não mesquinhas
que contam
quando a morte
se avizinha

Mas pintura
boa música
ver e amar
a deusa Plitseskaya
embora em vídeo
um canto de Elomar
coisas assim
poderosas
e sagradas
para mim
estão ao meu alcance
grandiosas
fazendo-me sentir
em minha corte
da alma
recebendo
o jovem Mozart


17

Pintando a tela
esperarei
o meu amor
ainda
que não venha
da jornada
não desfarei
do dia
a pincelada
conquanto
já me encontre
tão cercada
Quando chegar
se ele chegar
dos seus cansaços
terei um quadro
uma canção
e ainda
o trono
dos meus braços
aguardando
o seu retorno


18

Não me importa
que o mundo
tenha pressa
não tendo olhos
para o andar
desta poesia
o ser poeta
não comporta
garantia
e apesar
da aparente provação
ao próprio mundo
devo toda
a inspiração
As aparências
quase sempre
comezinhas
escondem o fulgor
de jóias raras
escondidas
em casas
tão vizinhas


19

Como criança
que fosse
o coração
resguardo
não guardando
nenhum
ressentimento
só quero
erigir-me
em monumento
à minha própria
e expontânea
alegria
que consiste
em amar
tudo o que existe
e cantar
o valor
cotidiano
do tão controvertido
ser humano
mas em mim
em mim
que o represento
deste ponto
de alma
em que me assento


20

Para tornar
a minha vida
bela
não mais acenderei
nenhuma vela
não farei promessas
que não cumpro
não conjurarei
deusas ou numes
através de preces
ou queixumes
Mas cantarei
através da minha arte
a alegria
que encontrei
e a poesia
de estar viva
sempre
em toda parte
com este imaginário
como guia


21

O mundo
é Maya
no entanto
certezas
várias
como fortes
correntezas
me trouxeram
a esta praia
de mim
tão solitária
Certeza
do verso
a necessidade
extrema
e da pincelada
a exatidão
velada
Desenhar
pintar
escrever versos
que valham
o que sofremos
ou amamos
este o sentido
supremo
da jornada
“a Arte é tudo
o resto
é nada”


22

Homem fútil
que te esfalfas
por
uma firma
um papel
ou uma venda
e quereis passar
esse legado
de sofrimento
tédio
e esforço vão
aos teus
rebentos
devias saber:
nada disso
é importante
e nada
fica
senão
a lágrima
derramada
que se cantou
ou o sorriso
indefinível
mas pintado
com destreza
como o fez
mestre Leonardo
A vida é breve
a Arte
longa
Da humanidade
presta
o que resta.


23

Renovarei
o meu alento
se puder
como
Van Gogh
O talento
faz
o que quer
o gênio
faz o que pode


24

Através
dos livros
tão queridos
tenho todos
os mundos
ao alcance
De todas
as viagens
tenho
a chance
e as lágrimas
do herói
banham-me
inteira
Mas volto
ao casarão
da minha infância
e ouço
os gemidos
da porteira
Desço
ao porão
da casa
adormecida
e escondo
meus tesouros
comovida


25

Renovo
Todo dia
meus votos
de alegria
e fiel
á Arte
que me guia
incito a alma
e o frágil coração
ao bom conflito
co’ a tristeza
e a vaga nostalgia
que ronda
o quarteirão
insidiosa
e fria


26

Se Deus
me deu
a Arte
é clara
minha missão:
lutar
o bom combate
ao feio
e à depressão
O mistério
no entanto
é a contradição:
o belo
engloba tudo
o cômico e o
grotesco
num saco
gigantesco
de aparente
confusão


27

Quando volto
a rondar
a macieira
do velho pomar
do casarão
percebo
o atavismo
desta cena:
remontaria
à Eva
e ao Adão?
porque
se estendo logo
a mão
ao fruto
luzidio
que ali pende
em desafio
uma ligeira culpa
me suspende
ali também
a alma
e o coração


28

O homem
que me abraça
todo dia
surpreso
com este livro
de poesia
conhece
este meu corpo
como a palma
e pouco
na verdade
desta alma
Dou-me a ler
pois
esta funda
exposição
ultrapassa
a oferecida
posição
da mulher
feliz em seu doar
com suas pernas
bem erguidas
para o ar


29

Tenho ânsias
e vôos
em minh’alma
que me espantam
a mim mesma
todavia
pode haver
maior contradição
ó alma aventureira!
ó coração
varado em nostalgia
que canta
e chora
como a Mouraria!


30

Às vezes penso
que vou
literalmente
explodir em alegria
amor
ou entusiasmo
Por que sou
assim
como um orgasmo
ambulante
e absurdo
em minha mente?
Percebo pois
naturalmente
que isso
não se passa
em muita gente
Mas antes
de qualquer diagnóstico
de um possível
médico
pernóstico
devo lembrar
a mim mesma
a natureza
dupla
feliz
e mais completa
de pintora apaixonada
e de poeta

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