Este espaço é dedicado especificamente à obra poética em versos livres da escritora gaúcha Alma Welt (1972-2007) e está sendo administrado por sua irmã Lucia Welt
sábado, 8 de setembro de 2007
O Circo (de Alma Welt)
Capa do folheto O Circo com desenho de Guilherme de Faria, pubicado dentro do Kit Poemas da Alma pelas "Edições do Pavão Misterioso".
A Lona
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Imensa tenda armada
em torno de um grande mastro
mais bela
se em frangalhos
mas depressa remendada
como colcha de retalhos
como estrelas, como astro
capturado na teia
de uma seara encantada
que vamos plantar à meia
e fará de todos nós
como num sonho desperto
crianças sob o luar
de um certo
Pierrô lunar
A Banda
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Pequena fanfarra mística
onde pistão e tambores
merecem nossos louvores
acima dos violinos
das flautas de toques finos
e de certos requintes
daqueles outros ouvintes
de tão outro parecer
que fomos (sem perceber)
antes de a lona adentrar
antes de ao rito ceder
O Mestre de Cerimônias
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Cartola de chaminé
um pouco mais alta até
bigodes que se reviram
e um pontudo cavanhaque
casaca, botas, colete
e (opcional) uma pança
que é sinal de liderança
(apenas como lembrete
haja visto Napoleão)
mas sobretudo um chicote
e sobretudo um anão
pra lhe servir de mascote
Eis o mestre:
um maestro
não da banda
mas do resto
O Palhaço
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Se disse
que o palhaço
é triste
Seu nariz
em riste
vermelho
é um espelho
do bêbado
em nós
agora
outrora
ou após
A Trapezista
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Como dourado cometa
de formação exemplar
flutua sobre o planeta
convocando nosso olhar
todo pro mesmo lugar:
o de sua aparição
quase a mesma sedução
e milagre pouco aquém
da estrela de Belém
daquela antiga Judéia
mas num certo vai-e-vem
que move a nossa pupila
desde o fundo da platéia
até a primeira fila
A amazona- desenho a pincel e nanquim de Guilherme de Faria, ilustração para o poema homônimo de O Circo, de Alma Welt.
A Amazona
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misto de bailarina
e aventureira
fascina
e certamente comove
o jeito
com que se move
no galope sincopado
do branco cavalo alado
em que dela são as asas
de um vôo insuspeito
não sobre as nossas casas
enquanto na arena corre
ou sobre a nossa cidade
mas que ocorre
na verdade
dentro do nosso peito
A Dançarina de Corda
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malabares
de si mesma
paira sobre nossos ares
prendendo a respiração
a nossa
que não a dela
pois mesmo sem rede
ou fivela
ela nem mesmo ofega
tal a concentração
proporcional à entrega
sem truques e sem tramóia
que produz essa jóia
de equilíbrio
e sedução
O Mágico
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Mágico já diz tudo
antes da aparição
da sua capa de veludo
Esperamos da cartola
pouco mais que a perfeição
de um coelho
ou de um pato
espelho
do espalhafato
que reflete
o nosso anseio
dessa doce incoerência
dentro do nosso seio
de nossa necessidade
da diária ocorrência
de um milagre perfeito
que seja no nosso peito
senão na nossa cidade
O Domador
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O domador
é a mensagem
de um equilíbrio precário
entre o humano
e o selvagem
Basta um pequeno temor
ou o mais leve tremor
para o castelo de cartas
construído
no tambor
desabar ou ceder
e num instante de horror
o bravo leão
nos comer
O Homem do prato chinês
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pensar na frágil destreza
do prato sobre uma vara
e não pousado na mesa
que é a única variável
por si só pouco provável
(pois nada nos leva a crer
que hoje vamos comer)
é mais uma prova de vida
(que tudo pode ocorrer)
e se a nossa comida
acaso ficarmos sem
ainda resta a solução
na verdade um pouco zen
de colocarmos o prato
girando como um pião
de um modo caricato
acima do nosso chão
Os anões
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Que circo terá senões
se não faltarem
anões?
Nossa necessidade
de referência e acuidade
da pretensa proporção
que atribuímos a nós
ficaria desfalcada
ou faltaria um pedaço
do retrato de palhaço
dessa nossa humanidade
Mas se eu parar
um pouco
mesmo durante o espetáculo
pra meditar
quanto ao fato
da existência incrível
dos anões entre nós
e não só sob a lona
que o coração desafia
largo a filosofia
e posso ficar chorona
Índio que estala o chicote
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Um índio pele vermelha
mesmo de olhos azuis
mais que depressa conduz
(enquanto estala o chicote)
meu pensamento pra a sorte
de toda a sua tribo
que não tinha o tal chicote
e que mui provavelmente
vivia debaixo dele
por causa de sua pele
Mas quando acende um charuto
pra fazer os anéis
mesmo com tanta graça
quase inverte os papéis
fazendo-me recordar
a grande vingança da raça
ao branco ensinando a fumar
O Atirador de facas
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Vestido de prateado
como as facas
do seu fado
parece saber ao certo
tiro, meta e resultado
pois com tanta segurança
mantém sua aliança
com um destino contado
já que a moça, seja ela
bela princesa ou plebéia
trazida de sua cama
ou colhida na platéia
é que está na corda bamba
ou sofrendo leves choques
sob a espada de Damócles
O Homem Forte
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Ninguém menciona do atleta
todo o prévio treinamento
barra, musculação
e todo aquele desgaste
mas somente a aparição
formidável, e o contraste
com a nossa condição
de simples mortais aos pares
já que tanto precisamos
do poderoso Ares
ou de um belo e forte Aquiles
de perfeitos calcanhares
para nos dar a medida
do sonho antigo do herói
que em nossa memória
ainda dói
quando pensamos na vida
O Engolidor de Fogo
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Zeloso do seu esôfago
falsa rima de pirófago
o homem que engole fogo
quase sempre nos faz crer
o fogo dele verter
de um doce dragão possesso
que mesmo sendo imponente
faz mais pensar em pimenta
quando a gente condimenta
nossa comida em excesso
Mas pondo de lado a razão
ou mesmo o sonho ancestral
que belo, que magistral
o fogo que deve vir
do fundo do coração!
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