Este espaço é dedicado especificamente à obra poética em versos livres da escritora gaúcha Alma Welt (1972-2007) e está sendo administrado por sua irmã Lucia Welt
sábado, 8 de setembro de 2007
A Ciranda dos Animais (de Alma Welt)
Capa do folheto publicado dentro do Kit Poemas da Alma, de Alma Welt, pelas "Edições do Pavão Misterioso" (disponível à venda na loja Calligraphia (rua Avanhandava 40, São Paulo)
A Ciranda dos Animais (de Alma Welt)
O Cisne
1
Singrando pequeno lago,
estranhamente à vontade
para fazer-nos sentir
toda a sua majestade,
desliza como uma gôndola
sem gondoleiro nem canto,
que este ele reserva
sob as asas, como um manto,
para soltá-lo por fim*
(mas numa altura que enerva)
quando avistar o seu fim.
Orfeu
(para além do Letes*,
foi quem o escolheu
pois não queria sequer
novo ventre de mulher)*
é que cantará enfim
por esta garganta muda
mas num grito lancinante
que paralisa o instante
e a Natureza transmuda.
A Raposa
2
Focinho muito afilado
para pôr o seu nariz
onde não foi chamado,
a raposa com sua astúcia
mais que proverbial
parece transcender
em si o próprio animal
pois uma tal malícia
escapa mesmo ao conceito
da inocência fictícia
do Paraíso Perfeito
mas que volta, por certo
como inocente cordeiro
quando acuada afinal
naquele cerco fatal
do homem mau, mais esperto.
O cão
3
Já se disse uma vez
que o latido do cão
refaz o cão, e por isso
ele o repete, tão,
e tantas vezes seguidas
pra manter assumidas
suas formas tão precisas
em tantas formas de cão.
Mas para além da impressão
de profunda metafísica,
o cão com o seu latido
capaz de curar a tísica*
(disse um louquinho metido
a cientista em perigo)
é na verdade um amigo
mantendo o homem desperto
e a salvo da demência
no silêncio do deserto
que põe a alma vazia
pela vaga sonolência
durante sua travessia.
A Vaca
4
Parecida com uma mala
em que transporta a si mesma
mas sem alça, amarrada,
e quase sempre malhada
a vaca seria um chiste
ou animal que não existe
causando a mesma estafa
que nos causa uma girafa
(como um mesmo desatino)
não fosse o úbere farto
cheio de leite concreto
que faz-nos ver o destino
como líquido e certo.
O Cavalo
5
Relincho, galope e crina
resumiriam o cavalo
não fosse a sensualidade*
que fez o homem achá-lo
entre outros no prado
e levá-lo pra a cidade.
A anca tão feminina,
do peito a motricidade
em sintonia fina
sobre as patas em finura
tão delicada, malgrado
a pesada ferradura.
A Galinha
6
Sua vidinha em cacarejo
monótono realejo,
mesmo quando está muda
irrita o galo orgulhoso
que se acredita um tenor
querendo soprano peituda
para um dueto maior.
Eis, a meu ver, o dilema
trazido por este tema,
quando penso na galinha,
independente do ovo
que é a sua obra-prima,
um verdadeiro primor
que a afirma de novo
como soprano, na rima
de um solo constrangedor.
O Lobo
7
Contra um luar sinistro
no alto de uma colina
é como vejo este artista
misto de rei e ministro.
Solitário, malgrado
a decantada alcatéia,
eu o vejo congregado
somente naqueles uivos
e também naquele prado
onde cerca os alces ruivos
com todo o bando faminto.
Mas para expressar o que sinto
diante de tal fera brava,
devo dizer que não minto
se sinto frágil a trava
que mantém o lobo oculto
no coração e na alma
mesmo de um homem culto.
O Gato
8
Felino, fino, finório
é um perfeito outro nome
pra esse ocioso notório
que só caça por preguiça
de esperar hora da fome.
Mas andando sorrateiro,
seu passo leve, maneiro,
tão perfeito e delicado
que o solo acariciado
se sente agradecido,
é a prova do capricho
de Deus que ao criá-lo
jogou a forma no ralo
mantendo o “design” fixo.
O Camelo
9
Aquela comparação
do tal "navio do deserto"
nascida no coração
de algum árabe esperto
resumiria o recado
desse arcabouço curvado
com corcovas como mastros
e um pescoço de proa,
pois singrando com os astros
sob um dossel infinito
não é decerto à toa
ser ele assim descrito,
que o camelo e tanta água
que carrega qual bagagem
navega sem muita mágoa
duas realidades:
dentro e fora, que são unas,
só projetando nas dunas
as ondas como miragem.
O Leão
10
Famoso e displicente
com sua reputação
esse grande indolente
deixa para fêmea a ação.
Que ela cace, que ela corra
que se esfalfe e mesmo morra
dando até de mamar
enquanto ele quer transar!
Mas, no entanto, que juba,
que imponência, que garra,
digo... possui na farra!
E tanta beleza viril
parece justificá-lo
para a leoa amá-lo
e também os seus filhotes,
que esperando no covil
só contam com a aparição
e o aspecto nada vil
desse belo maridão.
O Tigre
11
*Tigre, tigre, não pretenda
este poeta metido
dele tirar partido
e fazer uma emenda
ou mesmo tentar um “remake”
do grande tigre de Blake*.
Só queria reiterar
aquele fogo do olhar
e a forja daquela goela
que Deus resolveu forjar.
Quanto à “brilhante ardência”*
valei-me Deus, por clemência,
nessa “floresta da noite”*
em que eu nunca me afoite
pois deste lado do mundo
mantenho um medo profundo
de um dia, sem esperar,
o Tigre me devorar!
A Serpente
12
Sem plumas* e sinuosa
a serpente graciosa
a quem pesa a maldição
e a fama de perdição
Deus teria transmutado
Lúcifer,
o decaído,
num ser à terra achatado
já que o havia traído,
perdendo seu porte alado.
Mas quando observo
este ser ornamentado
de desenhos geométricos
muito raramente tétricos,
penso que Deus, o esteta,
não rejeitou a oferta
da Natura generosa
e com um dedo de prosa
resolveu pintar a cobra
p’ra não destoar da Obra.
FIM
Notas da editora:
*”...para soltá-lo por fim”- Alusão ao mito do “canto do cisne”. Este seria um animal mudo a vida toda, e que só canta na hora de sua morte. Daí o uso da expressão referente à última obra de alguém antes de morrer. Alma atribue esse canto final à presença da alma do cantor Orfeu, dentro do corpo do cisne.
*Letes , o "rio do esquecimento" no reino de Hades dos antigos gregos. As almas, em cortejo eram obrigadas ao atravessar esse rio, a beber de suas águas para esquecerem suas vidas passadas.
No jogo de escolha das novas vidas, Orfeu, segundo o testemunho de Er, o Armênio, no chamado Mito de Er (nas dez últimas páginas da República de Platão) escolheu a vida de um cisne, pois tendo sido morto pelas mulheres da Lídia, não queria renascer de ventre de mulher.
* ...capaz de curar a tísica(tuberculose). Não encontramos referência desse mito em parte alguma. Suspeitamos que seja uma criação jocosa da mente da própria autora.
*...” não fosse a sensualidade”- Alma , sendo do signo do cavalo no horóscopo chinês , tem motivos pessoais para atribuir imensa sensualidade ao cavalo.
*Tigre, tigre...-Alma faz referência ao célebre poema The Tyger , de William Blake, um dos mais amados e populares da língua inglesa. A poetisa faz referência ao versos do original inglês, que usa as palavras forja (furnace), e “burning bright”: brilhante ardência; bem como ‘forests of the night”, florestas da noite.
*sem plumas… Referindo-se à serpente, Alma faz sutil referência ao mito asteca do deus Quetzalcoatl, cujo símbolo era a Serpente Emplumada , com o qual Cortez foi confundido pelos astecas, no início de sua chegada ao México, antes de se revelar um homem maligno e cruel. (Lucia Welt)
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Sobre a obra
Um dos raros ciclos de poemas em que Alma não se coloca como o próprio tema ou protagonista da narrativa. Aqui ela aborda com muito humor as figuras e naturezas "humanizadas" de alguns animais.
Alma se inscreve dentro de uma tradição, a mesma, talvez, que perpetuou as fábulas de animais, de Esopo a La Fontaine. Entretanto a Poetisa, com alguns toques metafísicos, ao contrário dos fabulistas, não pretende nenhum sentido moral, mas se atém a uma fina ironia baseada nas caracteristicas físicas dos animais e seus epitetos e atribuições tradicionais pelos homens.
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